A ideologia de género é, de facto, absurda porque é uma invenção da extrema-direita que ignora toda a realidade e evidência dos estudos sobre o género. É um termo que apenas alimenta o preconceito e o desrespeito pelos direitos humanos, sendo tecnicamente incorreto, quer do ponto de vista jurídico, quer do ponto de vista das ciências sociais e dos direitos humanos e tem como agenda usar os temas da sexualidade para fomentar o pânico moral e ganhar adeptos para agendas extremistas.
Recentemente, lêmos, nas páginas do jornal Badaladas, um artigo de opinião preconceituoso e ofensivo, que mencionava o termo “ideologia de género” e outras mistificações, que merece o devido repúdio e reflexão. Um artigo que apela ao medo sobre temas morais e sexuais, com incorreções grosseiras que incita a discriminação, chegando a chamar ao casamento de pessoas do mesmo sexo de “aberração”, entre outras boçalidades homofóbicas, a roçar o crime de ódio e de discriminação, tão bem tipificados na lei.
A laicidade do Estado não é para ficar em casa
Já lá vai o tempo em que se faziam as leis conforme o que dizia ou pensava a Igreja e, para quem tem medo de Estados Islâmicos, muito nos espanta que gostem da ideia de um país onde a Religião se mistura com o Estado.
Ainda bem que em Portugal, vivemos num Estado laico, onde existe Liberdade de Religião, tal como refere o artigo 41.º da Constituição da República Portuguesa e uma clara separação entre Estado e Religião. É por isso chocante que, em 2022, ainda se tentem justificar ideias com argumentos como “leis da Igreja” ou “mandamentos de Deus”. A religião é algo que a cada um diz respeito e não algo que possamos impor aos outros, por isso, não pode servir para justificar qualquer política ou lei.
Dignidade Humana?
Ainda sobre o mesmo texto, que chama ao Aborto, Assassínio de Crianças e no mesmo paragrafo fala em Dignidade Humana. Dignidade Humana é o direito à escolha da mulher sobre o seu próprio corpo e o direito à vida das que o faziam sem segurança, sem falar nas que eram punidas legalmente, independentemente da religião a que se pertence. Dignidade é ter acesso à saúde e educação sexual, como o planeamento familiar e ver respeitados os direitos sexuais e reprodutivos, acedendo ainda a formação e informação, a começar pela escola. Quando até as Nações Unidas defendem o acesso ao Aborto Seguro como sendo parte dos direitos reprodutivos, que compõem os direitos humanos.1A ONU apresentou diretrizes para melhorar a segurança em abortos em todos os países. Isto porque, segundo a ONU, todos os anos, 39 mil mulheres morrem ou são hospitalizadas com complicações causadas por abortos inseguros.2
Apenas em 2007 o Aborto foi despenalizado em Portugal, resultado de um referendo em que venceu o SIM à despenalização. Desengane-se quem pensa que quando o aborto era ilegal ele não acontecia. As mulheres ricas podiam pagar para os fazer fora do país em segurança, as mulheres pobres corriam o risco de vida e de prisão, sujeitando-se a procedimentos inseguros, em vãos de escada e em barcos no meio do mar em águas internacionais.
De notar que o número de Abortos tem diminuído continuadamente desde a aprovação da lei. Isto deve-se, também, a um maior conhecimento sobre a saúde sexual e reprodutiva, em parte conseguida pela escola pública e que tanto a extrema-direita gosta de criticar.3
Morrer com dignidade é uma opção individual.
A Eutanásia ainda não é, efetivamente, uma realidade em Portugal, mas, em breve, esperemos que seja. Este é mais um exemplo de uma decisão individual que o fanatismo religioso quer limitar por convicções que devem ser pessoais.
Há que esclarecer uma coisa. Não é por algo ser permitido, neste caso, legal, que alguém é obrigado a fazê-lo. Com a legalização do Aborto, do Casamento entre pessoas do mesmo sexo ou com a futura legalização da eutanásia, ninguém é obrigado a fazer um aborto, casar com alguém do mesmo sexo ou decidir antecipar a sua morte. São escolhas que apenas dizem respeito a cada um de nós no exercício das liberdades e direitos.
Os opositores ao avanço social, que se baseiam em argumentos fanáticos, apenas provam que, de facto, são eles que querem impor algo aos demais.
Identidade de Género: entender primeiro e falar depois
Julgar que o Género se limita à biologia é bastante limitador, ainda mais quando se pensa nos órgãos sexuais como única componente biológica do género. A biologia são todos os caracteres sexuais, onde se incluem os genitais, os cromossomas, as hormonas, etc. É por isso fundamental entender a diferença entre sexo, identidade de género e orientação sexual.
1- Sexo:O sexo biológico tem como base as características geno ou fenotípicas de um indivíduo como: cromossomas (XY, XX, ou outras combinações), genitais (estruturas reprodutivas externas), gónadas (presença de testículos ou ovários), hormonas (testosterona, estrogénios), entre outros. O sexo atribuído à nascença é o sexo legal, binário, que os profissionais de saúde atribuem aos bebés à nascença, avaliando apenas com base nos seus órgãos genitais, não considerando os restantes componentes da biologia sexual humana. Este por norma vem acompanhado de um género que também é consequentemente atribuído à nascença e que influencia a maneira que a criança é educada e inserida na sociedade.
2- Género:O Género é uma construção social decorrente do contexto histórico e cultural. Engloba os conceitos de identidade e expressão de género, usualmente numa perspetiva binária em que existem dois conjuntos de características, comportamentos, entre outros, exclusivos de cada conjunto e opostos na sua essência, comummente associados à biologia sexual das pessoas. A identidade de género é aexperiência de género interna e individual que pode ou não corresponder ao sexo atribuído à nascença, e outras expressões de género, incluindo a maneira de vestir, a fala e os maneirismos. A expressão de género é como alguém se apresenta; incluindo o vestuário, os maneirismos, os acessórios, os penteados, entre outros. Pode ou não corresponder ao esperado da sua identidade de género. Há ainda que ter em consideração os papeis de género, que são o conjunto de regras que uma sociedade define para o género masculino ou feminino. Tais regras são mutáveis e dependentes do contexto histórico, cultural e social.
Há pessoas que não se identificam com o género que lhes foi atribuído à nascença. Estas pessoas designam-se como sendo trans“cuja identidade de género é diferente do sexo que lhes foi designado no momento do seu nascimento. Uma pessoa transgénero ou trans pode identificar-se como homem, mulher, trans-homem, trans-mulher, como pessoa não binária ou com outros termos (…)” in: Organização das Nações Unidas.
O género faz parte da nossa identidade e não tem nenhuma relação com a nossa ideologia ou militância partidária, nem pertence à esquerda ou à direita. A questão de fundo é sobre respeito. Não podemos fingir que tantas pessoas não existem, só porque isso nos confronta com os nossos preconceitos.
3- Orientação Sexual:Numa componente distinta existe a orientação sexual que nada tem a ver com o género, mas sim a quem nos sentimos atraídos sexualmente.
Não é possível ter uma abordagem séria sobre esta matéria quando se tenta fingir que o género não existe, ou faz parte de uma conspiração para influenciar jovens. Seria humorístico se não fosse trágico, para as vidas de tantos, rodeadas de sofrimento e incompreensão.
Juridicamente a identidade de género está tipificada, reconhecida e defendida na Lei n.º 38/2018 de 7 de agosto, sobre o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, bem como o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa, sendo proibida qualquer discriminação em função disso. Uma leitura aconselhada a quem quer falar sobre este assunto, bem como o artigo 13º da Constituição, sobre o princípio da igualdade.
No artigo 12º da mesma legislação determina-se que o Estado tem a obrigação de garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam a formação adequada, a proteção e o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas.
A escola deve formar gerações livres, felizes e saudáveis
A sexualidade é uma condiçãobásica do desenvolvimento humano, que deve fazer parte da formação dos jovens, como qualquer informação científica relevante. Permite-lhes perceber o mundo em que vivem e, acima de tudo, entendereme aceitaremos outros e a si próprios, independentemente das diferenças.
A informação sobre identidade de género, como a informação acerca da sexualidade, da educação sexual, do corpo, da saúde etc., fazem parte de um conjunto de ferramentas essenciais para o desenvolvimento pessoalnuma sociedade onde se respeitem os direitos humanos e não sediscriminempessoas por causa desta ou doutra característica.
O género tem uma componente cultural e sociológica que devemos entender. As sociedades esperam que homens e mulheres se comportem de determinada maneira e assim se desenvolvem características psicológicas e aprendizagens culturais, que formam a nossa identidade, cultura e modos de atuação.
Esta é uma discussão igualmente importante para abordar a igualdade de género e de direitos entre homens e mulheres. Trabalhando a aceitação das diferenças, os papéis de género e a sua transversalidade, através de uma educação que combata os estereótipos de género e a violência, para garantir as mesmas oportunidades, independentemente do género de cada um.
Por outro lado, toda a informação no âmbito da sexualidade, protege os jovens dos abusos e da predação sexual que ainda proliferam, graças à ignorância, ao medo e ao silêncio. É preciso deixar as crianças em paz, é verdade. E por isso é preciso que as crianças tenham as ferramentas necessárias para identificar os abusos de que são alvo. Tantos deles por parte da Igreja, conforme se tem verificado.
É igualmente fundamental para minimizar o sofrimento de muitas pessoas que são vítimas de um discurso de ódio, de violência física e psicológica, sofrendo na pele o preconceito e a desigualdade no acesso aos direitos.
A escola tem a obrigação de informar e formar cidadãos livres através do conhecimento, como a melhor forma de combater a ignorância, que alimenta os preconceitos, começando, desde logo, por derrubar tabus.
O estado não deve programar a educação segundo diretrizes ideológicas ou religiosas, mas sim promover uma educação com base na ciência e nos factos e não no fanatismo.
Então de onde vem o termo “ideologia de género”?
O termo nasce em ambientes de extremismo religioso e setores ultraconservadores da sociedade, que disseminam uma teoria da conspiração, segundo a qual estudar e informar sobre género irá destruir a chamada “família tradicional” e a “suposta ordem natural das coisas”, exacerbando os medos irracionais de uma população vulnerável ao pânico moral.
Os medos, de origem sexual e moral, são uma das bases de atuação da extrema-direita e um dos pilares da construção de ideologias autoritárias de pendor neofascista.
A democracia tem como fundamento o respeito pela dignidade da pessoa humana (de todas as pessoas), tendo o dever de proteger as minorias de ataques e de exclusão, mesmo que venham da maioria, pois se assim não for, estamos perante a ditadura da maioria e não numa democracia.
É também estratégia usada contra a população LGBTIQ+ criando uma amálgama de argumentos que visam alimentar a homofobia e a intolerância e assim, aumentar os números da causa ultraconservadora.
Está igualmente ligado à manutenção dos estereótipos nos papéis do homem e da mulher, tentando preservar uma organização social machista, cristalizada nos papéis típicos da mulher na família e na sociedade, e vice-versa, como se fosse a ordem natural das coisas e isso tivesse ligado a características estanques, inatas e típicas, quando tem muito de construção social. Discutir esta questão é mais um incómodo no conservadorismo bafiento, que defende o determinismo da identidade em relação ao sexo de nascença, para manter formas de opressão e supressão de direitos.
Não se trata de uma preocupação com as pessoas, mas de uma estratégia de difundir o medo mais íntimo ligado a questões morais e sexuais. Este tipo de argumentação tem fins de aproveitamento político de setores bem conhecidos, seguindo os manuais do caos e do medo da extrema direita.
Formar os jovens é a melhor forma de combater estas estratégias de engrossar as fileiras de ideologias autoritárias e preconceituosas, com agendas económicas e políticas inconfessáveis e que, muitas vezes, se escudam ainda em supostos ensinamentos religiosos, para justificar a sua intolerância.
A ficção da “ideologia de género”, visa retirar as questões da sexualidade da esfera da normalidade, dos direitos e da ciência; levando a discussão para patamares políticos extremistas com argumentos primários de “pureza moral”, “caos” e “aberrações”, fazendo crer que, os jovens são doutrinados a perverter a sua personalidade e ficam perturbados por acederem a informação essencial para a sua formação.
Assim, toda e qualquer informação científica, cultural ou social, que contribua para uma boa e saudável formação humana, deveria ser afastada das escolas e silenciada, deixando gerações de pessoas vulneráveis ao abuso, ao preconceito, à ignorância e ao sofrimento, constituindo vítimas fáceis de discriminação e consequente marginalização ou até eliminação de quem é diferente.
De forma relativamente velada, reconhecemos este tipo de discurso em certos setores, infelizmente até no nosso concelho, como estratégia de alienação para manutenção ou conquista de poder, propondo a negação da ciência e da educação, promovendo uma sociedade do medo e do obscurantismo, em vez de uma comunidade livre e com cidadãos plenos, felizes, aceites e com direitos.
1 Retrocessos no direito ao aborto seguro devem causar mais mortes, afirma OMS
2 OMS divulga diretrizes para melhorar segurança em abortos
3 Portugal com 11.640 abortos em 2021, o menor número desde a legalização da IVG