O Carnaval de Torres Vedras é parte da identidade e da cultura popular torriense com raízes profundas na história, nos costumes e em todas as dimensões sociais do nosso crescimento enquanto pessoas e comunidade. Explicar o que o Carnaval representa para os torrienses, não é fácil, dado que se trata de uma vivência festiva identitária, difícil de representar por palavras, mas sentida e vivida de muitas formas ao longo das nossas vidas. Mas se o espírito e a experiência são difíceis de definir, já a discussão sobre o que queremos para o nosso Carnaval parece hoje muito pertinente. Por isso propomos uma reflexão algo diferente centrada na defesa de um Carnaval popular, participado, com foco na sátira local e na liberdade humorística, representando uma verdadeira inversão do poder.
Uma das principais características do Carnaval de Torres tem a ver com o seu caráter popular de festa de rua, de espontaneidade e de irreverência, com a crítica social mordaz e a caricatura, como formas de diversão e contrapoder.
O Carnaval foi muitas vezes inconveniente e nunca se deu bem com a ditadura ou o autoritarismo, pois foi um dos raros espaços de liberdade antes do 25 de abril.
Refloresceu na República como espaço de crítica social e política ridicularizando a monarquia e o autoritarismo, apresentando uma inversão caricatural do poder monárquico com a família real. Teve dissabores com a ditadura, mas sempre se manteve nos discursos, nas coletividades, na rua, nas publicações, nas máscaras e nas entrelinhas, mesmo quando tentaram silenciá-lo.
A partir de meados dos anos sessenta, tornou-se uma festa de massas e muito mais irreverente, deixando de se relacionar apenas com uma burguesia urbana, que criou o corso mais organizado de carros alegóricos. Tem como património as figuras típicas, a caricatura, as máscaras, os discursos e essa capacidade de rirmos de nós próprios, tendo o humor como sinal revelador de inteligência e sentido crítico.
Com o 25 de abril também o Carnaval de Torres emerge como espaço criativo e de liberdade, mantendo ainda o seu caráter popular espontâneo e de identidade. A crítica, a caricatura e os discursos, deixaram de ter barreiras.
Dilema entre marketing e espontaneidade
Foram-se mantendo ao longo dos tempos um conjunto de características que têm origem na tradição e nos contextos sociais, mantendo-se fiel a aspetos únicos e resistindo a apropriações. Isto liga-se com outra dimensão, que é a prioridade à prata da casa, porque está a cargo de gente local, desde a organização, à construção, às caricaturas, aos textos, às figuras típicas e à participação.
É importante que sejam os torrienses a decidir e a gerir esta parte da sua vida, pois não está em causa apenas o acervo histórico e tradicional, mas essencialmente o espírito livre e as características menos explícitas de quem o vive e lhe dá significado.
O Carnaval mais moderno, desenvolve-se essencialmente com o seu corso e a divulgação nacional da festa com transmissões televisivas, tornando-se num cartão de visita do concelho. As diversas formas de promoção representam uma viragem na sua dimensão, afastando-se de uma comissão organizadora independente, criando-se uma estrutura profissional, supostamente necessária para a projeção desejada com segurança financeira.
O corso, torna-se num cartaz turístico e económico, com supostos ganhos de milhões na economia local, até pelos diretos televisivos. Os temas nacionais e internacionais começam a ganhar terreno. Em 1988 surgem os Carnavais temáticos que se afastam de temas locais e se tornam gerais. A festa popular de rua, que também se vivia no corso, foi nesta parte apropriada pela economia, diferenciando o corso institucional, do corso trapalhão participado.
Aqui surge o primeiro grande dilema do Carnaval de Torres, que é saber onde fica o Carnaval como festa tradicional popular face a um Corso institucionalizado, ou seja, saber como se conciliam aspetos turísticos e económicos de massificação, com a sua essência tradicional única, que se vai perdendo.
Aquilo que melhor caracteriza o Carnaval de Torres, é a diversão e a participação espontânea na festa de rua que subverte o poder e a lógica das coisas. Quanto mais se institucionalizar e profissionalizar esta dimensão, mais se perde o espírito. Participar de forma voluntária e espontânea durante dias e noites, por pura diversão, é diferente de fazer presenças em eventos turísticos de promoção televisionada, que estão longe do essencial.
Sátira de temas locais e prata da casa como prioridades
Outro dilema prende-se com o declínio da sátira local e dos temas da política e da sociedade do concelho, em detrimento de abordagens nacionais e mais neutras. A sátira nacional e internacional, sempre foi abordada, mas não pode sacrificar o local. Desde o monumento, às publicações, até aos carros e temas lançados, perceciona-se um esvaziar dos aspetos de sátira mordaz concelhia e um desaparecimento dos artistas e pensadores locais, para um fechamento sobre si próprio e uma lógica empresarial pouco aberta e participada.
Ao profissionalizar e municipalizar uma festa que deveria ser espontânea, começa-se a percecionar uma escolha de temas genéricos, de imagens nacionais, e de tipos de piadas mais politicamente corretas. Os temas dos carros alegóricos, incluindo os de política local, bem como o monumento, são aprovados num concurso de projetos de construção, onde se desconhece quem decide e com que critérios. Sabemos bem que o poder gosta de ditar as modas dos festejos e quando a empreitada da festa se torna num negócio, isso condiciona, desde logo, a liberdade de crítica, moldando a festa à sua própria imagem.
Como exemplo, em ano de eleições autárquicas, o monumento do Carnaval poderia ter sido um prato cheio para a crítica política e não o foi. Os carros dedicados à política local seguem um tema global, perdendo anualmente a força de uma crítica que deveria ser mordaz e inconveniente, mas que aparece retratada de forma genérica e bem-comportada.
O Carnaval de Torres deveria reunir anualmente muito mais gente para opinar e decidir, dando voz e protagonismo aos torrienses, num sistema mais aberto e sem escolha institucional. A sua planificação deve ser alargada à população e não pertencer a uma empresa municipal ou a uma estrutura profissionalizada.
Com a institucionalização do corso organizado, preserva-se apenas uma atividade centrada na burguesia urbana como inicialmente foi criada, enquanto se vão perdendo as festas populares em todo o concelho, a queima do entrudo popular rural, os assaltos de casa em casa, as partidas, o desmascarar dos mascarados e a própria inversão de valores. Vai-se confundindo este corso televisivo, com o corso trapalhão, que já é difícil de detetar no seu interior, por estar cada vez mais enquadrado para a fotografia, absorvido pela dispendiosa máquina empresarial, onde se recorre à pré-inscrição, a um tema genérico único e a entradas pagas.
Temos ainda o exemplo do Carnaval de verão, que nada tem a ver com a época do ano ligada às origens do Entrudo nem à espontaneidade e mais não é do que uma tentativa forçada de fazer um cartaz turístico.
Não devemos esquecer que a chegada dos reis e a entrega da chave da cidade, deveria ser um momento simbólico essencial representativo de que o povo toma conta do processo e que o município tem de saber gerir essa participação sem interferir, sem municipalizações ou protagonismos políticos.
O Carnaval de Torres nunca foi sobre turismo ou economia, mas sim sobre diversão e participação espontânea, sobre liberdade e sátira, sobre cultura popular e a tradição do entrudo português. Não pode ser uma empreitada empresarial institucional, bem-comportada e politicamente correta, só porque o investimento atingiu uma dimensão enorme e precisa do respaldo do município, especialmente em anos de chuva.
Comemoração dos 100 anos e Centro de Artes
Esta preocupação com a perda de participação, ganha relevo na polémica ausência das associações carnavalescas na inauguração do Centro de Artes e Criatividade, CAC; com divergências conhecidas das atividades a realizar durante a pandemia; bem como nos desacertos e omissões na Comissão das Comemorações.
A própria data para celebrar 100 anos, remonta ao ano de 1923, restringindo a celebração à data do primeiro corso organizado, não estando relacionada com datas anteriores de um entrudo mais popular e ancestral. Esta conceção, fecha o conceito do Carnaval apenas ao seu corso urbano de raiz burguesa.
Quanto ao suposto Museu, basta uma visita à estrutura do CAC para se perceber, que ali não mora o Carnaval de Torres. Uma estrutura que nos venderam como um Museu para o Carnaval e até anuncia ter objetivos de preservar, divulgar, estudar e guardar o acervo do Carnaval; mas que desilude quem visita pela falta de vida e porque a festa não cabe num sótão ou sequer entre quatro paredes brancas. Ainda não foi explicado aos torrienses como se passou de um suposto Museu inteiramente dedicado ao Carnaval, que custou milhões de euros, para um elefante branco, completamente desligado do povo e que nem o Carnaval tem no nome. Afinal estamos perante que tipo de estrutura, com que objetivos e como chegámos a esta situação?
Fica a perceção que estamos perante uma crescente municipalização e artificialidade do nosso Carnaval, onde o essencial perde espaço e protagonismo e está a dar lugar a personalidades e estratégias promocionais politicamente corretas.
Para além da necessidade de garantir a sua sobrevivência, de fazer comemorações institucionais ou ainda de ter um espaço que possa ser um núcleo de memória e preservação dos testemunhos e artefactos; a nossa preocupação essencial está na discussão acerca do futuro da verdadeira festa popular do Carnaval, que nasceu para ser inconveniente, vivida e ter uma ampla participação na sua conceção, em vez de musealizada ou municipalizada. Isto é o que realmente nos deveria interpelar enquanto torrienses.