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Qual é a situação dos milhares de trabalhadores agrícolas migrantes em Torres Vedras?

A situação dos trabalhadores agrícolas migrantes em Torres Vedras, tem estado convenientemente envolta em opacidade, com as entidades responsáveis em silêncio sobre as condições de vida e laborais destas pessoas, o que faz com que passem despercebidas. Mas a pandemia teima em trazer de volta o assunto pela terceira vez, o que se transforma num incómodo, que, nem que fosse só por isso, deveria obrigar a uma ação imediata e robusta. Mas o que se assiste é uma cortina de silêncio. Os torrienses merecem ser informados e ter respostas.

Não foi por falta de avisos atempados. Em junho de 2020 o deputado do Bloco de Esquerda da Assembleia Municipal, João Rodrigues, apresentou uma recomendação para que a autarquia tivesse um papel ativo no acompanhamento e sensibilização junto dos trabalhadores agrícolas e respetivas empresas, devido às condições de vida e possíveis contágios na campanha agrícola que se avizinhava, nomeadamente na população migrante.

A proposta foi chumbada pelo partido socialista, com a veemente argumentação de que a autarquia não teria que andar a fazer esse papel, dado que tudo dependeria dos comportamentos sociais adotados pelos cidadãos e pelos empresários agrícolas. Não foi uma preocupação para a maioria da Assembleia, nem para a autarquia.

O preço desta omissão pagou-se caro, com um primeiro surto de enormes dimensões em novembro de 2020, com mais de duas centenas e meia de trabalhadores agrícolas afetados, que colocou Torres Vedras em situação difícil com as medidas mais restritivas de risco elevado. A forma encontrada de isolamento foi recorrer a um Hotel, dado que não era possível faze-lo devido às condições habitacionais.

Soubemos nessa altura, pelo Delegado de Saúde, que, só na zona de A-dos-Cunhados, haveria mais de dois mil trabalhadores agrícolas migrantes nestas circunstâncias. Deveriam ter soado todos os alarmes em relação à forma como estas pessoas são contratadas, como vivem, como acedem aos seus direitos, aos serviços, à saúde e como são tratadas na nossa terra, que é também sua, nomeadamente pelas empresas que os contratam e os angariadores envolvidos.

Mas, mais uma vez, o assunto foi retirado da esfera pública e continuámos a ser informados sobre a pandemia através de lacónicos números, sem ninguém saber o que foi efetivamente feito, se alguém verificou as condições de habitabilidade, de contratos de trabalho e de higiene. Fez-se, de novo, silêncio.

Não foi, por isso, com surpresa que em abril tivéssemos novamente um segundo surto, com mais de 40 trabalhadores agrícolas isolados e o assunto voltasse a estar na ordem do dia. Mais uma vez teve de ser usado um Centro de Acolhimento, devido às condições de habitação destas pessoas.

Como não há duas sem três, estamos neste momento a viver um surto, com mais de três dezenas de trabalhadores agrícolas migrantes em isolamento. De novo se volta a falar de condições de habitação e de direitos. O que mais precisa acontecer?

Curiosamente na Assembleia Municipal de 27 de abril a autarquia apresentou um Plano Municipal para a Integração de Migrantes, a 4 meses de eleições, após décadas de governação. Infelizmente, em relação aos trabalhadores agrícolas migrantes este Plano é uma mão cheia de nada.

No levantamento apresentado, os dados estatísticos do SEF remontam a 2018 e identificam 3.4117 migrantes no concelho. Para além de serem dados desatualizados, não são recolhidos no terreno, nomeadamente na zona agrícola, não refletindo essa realidade. Existe a referência a algumas centenas de Nepaleses e Tailandeses, a par de Ucranianos, Romenos e Brasileiros, estes últimos 3 grupos em clara maioria.

As cinco maiores necessidades detetadas são, acesso a habitação digna, ao trabalho, apoios sociais, acesso à saúde e aconselhamento à chegada. A língua e a discriminação foram também identificadas.

Tratar-se de um Plano mais geral de apoio à integração, mas as respostas aos problemas não estão adequadas aos trabalhadores agrícolas, e mesmo para os restantes, passam ao lado do essencial dos problemas detetados, para além de não haver qualquer orçamento para as ações, portanto será mais um Plano no papel, mas no essencial tudo fica na mesma.

Na área mais grave, a da habitação, remete para um outro documento, a Estratégia para a Habitação, também levado à mesma Assembleia. Aqui o apoio a migrantes é inexistente, referindo que há estudos a ser feitos, logo, também não há nada de concreto, nem financiamento previsto. Muito menos para os trabalhadores agrícolas, apesar de ser reconhecida a sobrelotação e falta de condições em muitos dos alojamentos e contentores, bem como é referido que as autoridades de Emprego e do Trabalho, nomeadamente a Autoridade para as Condições de Trabalho, não faz o acompanhamento posterior ao licenciamento, por isso as situações irregulares não são conhecidas.

Dada a atual situação, seria de esperar uma ação de emergência concreta e rápida no terreno de várias entidades junto das empresas, especialmente da própria autarquia, para tomar o pulso à situação, apoiar as pessoas na parte legal, na habitação, no acesso aos serviços públicos, na tradução e mediação e nos problemas que possam apresentar.

Seria importante ter a intervenção de equipas no terreno para fiscalização, chamar as empresas à responsabilidade e encontrar soluções articuladas. Saber como são angariados, quanto ganham, que negócios estão envolvidos na sua contratação e se os seus direitos estão assegurados.

Com a situação em Odemira, Torres Vedras corre o risco de se associar a esta triste realidade, da pior forma. Quem afinal controla as empresas de trabalho temporário e as condições laborais destas pessoas? Quem articula com os empresários para garantir condições dignas de habitação? O que andam a fazer as autoridades do trabalho, segurança social, de saúde?

Sabemos que são vários milhares no nosso concelho e aumentam todos os anos, pelo que a autarquia deveria aqui ter um papel central de articulação e intervenção no terreno, não apenas por razões de saúde pública, mas também de humanidade, garantindo que não estamos perante casos de nova escravatura e exclusão, aos quais respondemos com indiferença criminosa.

Torres Vedras é um concelho com uma enorme área agrícola, nomeadamente com grande superfície de estufas. É chegada altura de se pedirem explicações e ações concretas às entidades responsáveis e às empresas e deixarmos de meter a cabeça na areia, perante um caso de direitos humanos. Como torrienses, temos o direito de ser informados sobre o que se passa e o que está a ser feito, porque não queremos ser cúmplices.