A ideia de que Portugal não é um país racista é bem comum e tem razão de ser. Tudo começa na nossa educação. Crescemos com a ideia de que fomos “bons colonizadores”, como se tivéssemos feito a colonização de forma diferente dos outros povos europeus. Apesar de não se verdade, sem dúvida, traz conforto ao povo português, branqueando os horrores da sua história.
Portugal tem um grande problema em falar sobre a colonização, que faz parte da sua história, tal como a guerra civil ou as invasões francesas. É esta dificuldade em falar sobre a colonização que dificulta a luta contra o racismo, que vai existindo escondido, estando tão enraizado que pode passar despercebido a quem não sofre com ele.
É urgente mudar os currículos escolares para discutir o período de colonização tal como ele foi: violento, sangrento e brutal para todos os povos africanos que foram separados das suas famílias, vendidos para trabalho escravo, violentados, violados e mortos. Tantos anos de educação e sempre se falava dos descobrimentos como o período áureo dos Portugueses, como se fossemos autênticos heróis. Sendo a parte da escravatura chutada para canto ou falada rapidamente e à pressa para não haver muitas perguntas.
Nem na faculdade houve espaço para falar de outra forma sobre o período dos descobrimentos. Lembro-me de um professor dizer que tínhamos de ter muito cuidado a falar sobre o Mercado de Escravos em Faro, aos turistas e visitantes para não ferir suscetibilidades… A escravatura deveria ser ofuscada com a história do heroísmo Português.
Esta estratégia de tentar branquear e ignorar a história faz com que os Portugueses tenham muita dificuldade em falar sobre estes temas, preferindo dizer que eles simplesmente não existem! É muito mais fácil dizer que o racismo não existe em Portugal, do que ter uma conversa séria e difícil sobre este assunto. Isto para dizer, que a educação e os currículos escolares são uns dos principais culpados pelo racismo em Portugal, porque não foram capazes de abrir este tema e de o discutir. Enquanto país, precisamos urgentemente de falar sobre o racismo, em vez de fingir que ele não existe.
As pessoas que afirmam não existir racismo em Portugal, com certeza não andam atentas, pois o racismo é muito mais do que aquele: “vai para a tua terra”. A somar às denúncias das pessoas racializadas, vários estudos e relatórios têm mostrado como o racismo existe na sociedade portuguesa. Só não vê que não quer…
Dados do European Social Survery, que entrevistou 40 mil pessoas em mais de 20 países, durante 15 anos, evidenciam que Portugal é o país com um índice mais alto de Racismo Biológico (crença de que há raças ou grupos étnicos que nasceram menos inteligentes e/ou menos trabalhadores), com 52,9% contra a média europeia de 29.2%. E o quinto país com mais elevado nível de Racismo Cultural (crença de que há culturas muito melhores do que outras), 54.1% para uma média europeia de 44%.
Num relatório divulgado em 2018, pelo Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa (CPT), é explicito que a violência policial e os maus tratos nas prisões são frequentes em Portugal e que, as pessoas afrodescendentes estão mais expostas a essas violações de direitos humanos, demonstrando como a polícia portuguesa faz discriminação racial.
Em 2018, A Inspeção-Geral da Administração Interna, recebeu 860 queixas contra a atuação das forças de segurança, o valor mais alto dos últimos 7 anos. Mas isto não surpreende, basta prestar atenção às notícias e a casos como o de Cláudia Simões e, mais recentemente, quando a polícia torturou e matou um cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa, tentando encobrir o caso.
Portugal tem um órgão público encarregue de combater a discriminação racial, sendo este a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial. Ora se a discriminação racial não existisse, este órgão não seria necessário… Todos os anos a comissão elabora um relatório sobre a situação de igualdade e não discriminação racial e ética no país. O último disponível data de 2018, ano em que a comissão recebeu 346 queixas, representando um aumento de 93.3%, face ao ano anterior. A discriminação racial está presente em várias esferas da vida como: acesso à saúde, habitação, educação, serviços públicos, etc. No entanto, é preciso ressalvar que este número de queixas não reflete a situação real da discriminação, porque a maioria dos casos não é reportada.
Mas de facto, nem são precisos muitos dados para que nos apercebamos do racismo estrutural na nossa sociedade, se prestarmos atenção, vemos a discriminação racial todos os dias. Basta pensar como as comunidades racializadas são empurradas para a periferia das cidades, onde se constroem os famosos bairros socias, que tão bem sabemos, só servem para perpetuar as desigualdades. Nestes bairros, o Estado não está presente, não há segurança social, centro de emprego, centro de saúde, escolas ou transportes em condições. Como pode depois o mesmo Estado, que abandona estas pessoas, esperar que elas se “integrem na sociedade”? Para piorar a situação, quando o Estado visita estes bairros é com polícia de intervenção, para exercer violência. É assim que estas pessoas conhecem e vêm o estado. Isto para não comentar a própria arquitetura de muitos bairros sociais, que apenas têm uma entrada e saída, de forma a facilitar as operações policiais.
Na série de entrevistas e peças feitas pelo Jornal Público, denominada Racismo em Português, são analisadas as várias esferas da discriminação racial. Uma das peças, denominada: Quero a oportunidade de provar que posso fazer igual aos brancos, é precisamente sobre o trabalho, área onde, facilmente, qualquer um pode notar a existência de discriminação quanto ao acesso a certas profissões. Não nos questionamos sobre o porquê de não haver jornalistas negros, por exemplo? Ou que seja tão difícil encontrar pessoas de comunidades racializadas em posições de alta visibilidade mediática em Portugal?
De facto, grande parte dos trabalhos mais precários e mal pagos são desempenhados por pessoas racializadas. É só prestar atenção a quem limpa o metro, os supermercados, os centros comerciais ou mesmo as nossas faculdades. E as pessoas racializadas não desempenham trabalhos precários e mal pagos por pura casualidade, estes são o reflexo de condições de habitação precárias, difícil acesso à educação, saúde, serviços públicos, etc. Para além de ocuparem a maioria destes trabalhos, os cidadãos dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), também recebem salários mais baixos do que os colegas brancos ao desempenhar as mesmas funções. Também no desemprego a discriminação racial se faz sentir, sendo que em 2015, a taxa de desemprego para os cidadãos dos PALOP era mais do dobro (32,97%), do que a taxa de desemprego da restante população portuguesa (12,4%).
Também a educação tem de ser reformulada. Podemos pensar que os tempos de discriminação por parte das instituições de ensino, em que os alunos negros ficavam no fundo da sala, já lá vão. Mas ainda em 2015, foi notícia o caso de uma escola em Tomar, que tinha feito uma turma apenas de alunos ciganos… uma ação clara de segregação. Casos destes, ainda são uma realidade em Portugal que é preciso mudar. Um estudo do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa, denominado: Os afro-descendentes no sistema educativo português, revelou dados impressionantes. Os alunos afrodescendentes têm taxas de retenção mais elevadas do que os colegas Portugueses, têm 80% maior probabilidade de serem encaminhados para cursos profissionais e têm muito menos probabilidade de fazer um curso superior.
As comunidades racializadas também estão pouco representadas no poder político, o que dificulta a sua luta por melhores condições de vida. Neste campo, o ano de 2019 foi talvez o princípio da mudança, com três mulheres negras a entrarem para o Parlamento. São elas: Joacine Katar Moreira, que encabeçou a lista pelo partido LIVRE, mas atualmente é uma deputada independente; Beatriz Gomes Dias pelo Bloco de Esquerda e Romualda Fernandes pelo Partido Socialista. As três deputadas representam a luta antirracista dentro do Parlamento, fator de grande importância, pois quem melhor para lutar pelos direitos das comunidades racializadas do que aquelas que experienciam o racismo na primeira pessoa.
Com efeito, o Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda fez aprovar por unanimidade, no dia 3 de junho, na Comissão da Assembleia da República, um projeto de resolução que visa a criação de uma Estratégia Nacional de Combate ao Racismo. Este projeto prevê a participação de várias organizações antirracistas para a construção de medidas destinadas a corrigir as desigualdades nas áreas do emprego, da habitação, da educação, da saúde, da proteção social, da justiça e da segurança, entre outras.
O INE (Instituto Nacional de Estatística) rejeitou incluir perguntas sobre a composição étnico-racial da sociedade portuguesa nos Censos de 2021. Desta forma, torna-se difícil obter um retrato preciso da diversidade de que é composto o país, bem como avaliar a desigualdade e a discriminação étnico-racial, de modo a corrigi-las através de políticas públicas. Assim, uma das medidas do projeto apresentado pelo Bloco de Esquerda é a realização de um estudo nacional, de natureza abrangente e transversal, sobre as desigualdades resultantes de discriminação étnico-racial, em Portugal.
Atualmente, as questões raciais e de violência policial voltaram a ser notícia pelas piores razões, com mais um cidadão negro morto às mãos da polícia nos Estados Unidos. Acontecimento recorrente nesse país e onde raramente os polícias são levados à justiça. Por isso, a população insurgiu-se em várias manifestações e ações de protesto, pedindo justiça pelo assassinato de George Floyd. Este acontecimento correu o mundo, e as ações de protesto multiplicaram-se por vários países, exigindo o fim do racismo e da violência policial. Em Portugal, também estão marcadas ações de protesto para o dia 6 de junho, em articulação com a manifestação denominada:“Resgatar o futuro, não o lucro”, que também vai decorrer nesse dia em Lisboa. Estas ações de protesto vão apoiar os movimentos nos Estados Unidos e ainda alertar para o racismo em Portugal.